É com enorme tristeza que comunicamos o falecimento de  Lourdes da Silva Pimentel, ocorrido em 8/09, em razão de complicações da COVID-19. Embora tivesse o esquema de vacina completo, Lourdes tinha comorbidades. Quando se conhece a precariedade do SUS nos municípios da Baixada Fluminense, especialmente Belford Roxo, onde foi socorrida, é possível supor que Lourdes, talvez, não tenha recebido os cuidados necessários. Mais uma vida perdida se adiciona à colossal mortandade por COVID-19 no Brasil, resultado do negacionismo presidencial com sua política de deliberada negligência apostando, irresponsavelmente, na chamada imunidade de rebanho.

Algumas de nós já conhecíamos Lourdes quando, em 14 de novembro de 2002, ela buscou ajuda para lutar pela vida de sua filha, Alyne, que grávida de oito meses enfrentava uma situação de péssima assistência médica em uma maternidade contratada pelo SUS no município de Belfort Roxo. Dois dias depois Alyne morreria. Havia sido removida para o Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, entrando para a lamentável estatística brasileira das mortes maternas evitáveis. Alyne deixou uma filha de 5 anos, Alice, da qual Lourdes cuidou com todo carinho, dedicação e espírito de luta por direitos.

Conexões feministas foram fundamentais para ajudar Lourdes a demandar justiça para sua filha, para ela própria e para a neta, Alice. A partir do trabalho feito no Brasil pela Advocaci – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos (ONG que já não existe) e da parceria com o Centro para os Direitos Reprodutivos (CDR), o caso foi levado ao Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), da ONU. Em 2011, o Comitê condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos humanos de Alyne por efeito da discriminação racial e de gênero, e por infração flagrante contra o direito à saúde, todos princípios gravados na Constituição Federal de 1998.

Lourdes foi uma guerreira. Enfrentou com tenacidade o tempo demasiadamente longo dos processos judiciais acima mencionados, enfrentando as burocracias da justiça brasileira e, depois do caso julgado, aguardando, com paciência e muitas vezes em situação de penúria, as negociações com o Estado pela devida reparação financeira. Embora com problemas de saúde, sua energia era incrível e revelava-se nos momentos mais desafiantes, como os das entrevistas para a imprensa, quando era sempre muito firme, e na viagem à Brasília para receber a parte da pequena reparação financeira que lhe era devida. Ou ainda, na cerimônia de inauguração da placa que nomeia uma UTI para gestantes de alto-risco na maternidade Mariana Beltrão, em Nova Iguaçu, na qual estava presente uma representante do Ministério da Saúde. Ao fazer uso da palavra,  Lourdes afirmou que sua luta, de muitos anos, se sustentava pelo pensamento de que, uma vez vitoriosa, as mulheres não mais morreriam de morte materna evitável, como havia morrido sua filha.

Lourdes foi também a avó amorosa que acompanhou o crescimento de Alice, sustentada com seus recursos, pois até hoje Alice não recebeu a reparação financeira que lhe é devida pelo estado do Rio de Janeiro. Hoje,  passados 10 anos do julgamento, há sinais de que os esforços incansáveis do CDR, com apoio advocatício brasileiro pro bono, irão finalmente assegurar o pagamento dessa reparação.

Em meio à tristeza pela partida de Lourdes, queremos sublinhar o quanto sua história de vida e o Caso Alyne deixam um legado inestimável de exemplaridade da luta feminista e das mulheres populares por justiça, para que um dia seja possível reverter a escandalosa taxa de mortes maternas que se registra no país e de que são vítimas, majoritariamente, as mulheres negras e pobres. Essa exemplaridade é ainda mais significativa porque nossa estimada Lourdes se foi quando no contexto da pandemia, também, assistimos o crescimento dramático das mortes maternas no país, ao mesmo tempo em que políticas de saúde reprodutiva são desmanteladas por descaso e por vieses ideológicos canhestros.

Que as vidas de Alyne e Lourdes nos inspirem a dar continuidade à incessante luta por respeito ao direito constitucional à saúde e a não discriminação, bem como pelo resgate e reconstrução de políticas nacionais sólidas e sustentáveis de saúde sexual e reprodutiva.

Obrigada Lourdes! Você estará sempre presente em nossas memórias.

Deixamos aqui nosso abraço solidário a Alice e toda sua família, pela inestimável perda.

Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2021

Para conhecer o caso Alyne: https://reproductiverights.org/wp-content/uploads/2018/08/LAC_Alyne_Factsheet_Portuguese_10-24-14_FINAL.pdf

Assinaturas Institucionais

Gabriela Rondon – ANIS Instituto Feminista de Bioética

Adriana Mota – Articulação de Mulheres Brasileiras Rio

Jacqueline Pitanguy – CEPIA

Sandra Basso – CLADEM Brasil

Lucia Xavier – Criola

Paula Viana – Grupo Curumim

Cristião Rosas – Médicos pelo Direito de Decidir

Sonia Corrêa – Observatório de Sexualidade e Política -ABIA

Paula Guimarães – Portal Catarinas

Helena Borges Martins da Silva Paro – Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras

Liliane Brum- REDEDH

Assinaturas individuais

Ana Paula Schiamarella  – Professora de Direito na UNIRIO

Angela Freitas – Boletim Futuro do Cuidado

Beatriz Galli – Pesquisadora

Carmen Heins de Campos –  Professora de Direito na UniRitter

Gleyde Selma da Hora – Advogada

Greice Menezes – Pesquisadora do MUSA-ISC – UFBA

Helena Paro – Médica e professora da UFU

Magaly Pazello  – Professora e pesquisadora

Margareth Arilha – Pesquisadora do NEPO-UNICAMP

Miriam Ventura –  Professora do IESC-UFRJ

Rulian Emmerick – Professor de Direito na UFRRJ

Sandra Valongueiro – Médica Sanitarista e Pesquisadora da UFPE

Silvia Pimentel – Professora de Direito na PUC/SP e ex- presidente do Comitê CEDAW

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Para conhecer o Caso Alyne: https://reproductiverights.org/wp-content/uploads/2018/08/LAC_Alyne_Factsheet_Portuguese_10-24-14_FINAL.pdf